Flores de Gelo: O império caído Capitulo 8 - Parte V
A caminhada pelo vale era silenciosa, interrompida apenas pelo som de folhas sendo esmagadas sob os pés e o murmúrio distante do rio. O ar tinha uma estranha densidade, como se carregasse histórias antigas de tempos esquecidos. Anya sentia o peso da atmosfera, mas havia algo ainda mais opressor: o comportamento de Heather.
Desde a caverna, a princesa de Carmesins estava distante, fria. Era como se tivesse erguido um muro invisível entre ela e o restante do grupo.
— Vamos nos dividir — sugeriu Kikyo, parando no meio de uma clareira. Sua postura era sempre serena, mas o tom de sua voz carregava um peso de autoridade. — Este vale é vasto, e não podemos nos dar ao luxo de explorar juntos. O tempo não está ao nosso favor.
— Dividir? — Victórya ergueu a sobrancelha, claramente desconfortável. — Não acha que estamos mais seguros juntos?
Kikyo balançou a cabeça.
— Não se trata de segurança. Trata-se de eficiência. Não vamos longe se nos movermos como uma massa.
Kael, que permanecia observando o ambiente, assentiu.
— Ela está certa. Há algo neste lugar que não queríamos encontrar. Quanto menos barulho fizermos, melhor.
O grupo trocou olhares hesitantes, mas ninguém argumentou. Kikyo começou a designar as duplas:
— Victórya, vá com Crystal. Eu irei com Kael.
Anya observou enquanto as duplas se formavam e sentiu o coração apertar ao perceber quem sobrava.
— Anya e Heather, vocês duas vão juntas.
Heather nem piscou ao ouvir seu nome, apenas ajustou a roupa. Anya, por outro lado, engoliu seco. Não era que não quisesse estar com Heather — elas eram amigas desde sempre — mas aquela Heather parecia outra pessoa.
— Não se afastem demais — alertou Kikyo. — Marquem pontos de referência e mantenham o ritmo. Encontramo-nos aqui antes do pôr do sol.
Com isso, as duplas seguiram caminhos diferentes, desaparecendo entre as árvores.
Anya e Heather caminharam em silêncio, os passos abafados pela vegetação densa. O vento carregava o aroma de flores exóticas e folhas úmidas, mas não conseguia dissipar a tensão entre elas.
Anya olhou de soslaio para Heather, que mantinha o olhar fixo à frente, os lábios apertados em uma linha fina. Era como se ela estivesse em outro mundo, desconectada de tudo ao redor.
— Você está bem? — perguntou Anya finalmente, sua voz baixa.
Heather não respondeu de imediato. Após um longo momento, ela suspirou.
— Estou.
— Não parece — insistiu Anya, parando no meio do caminho. — Desde quando voltei a te ver, você está diferente. Mais... distante.
Heather parou também, virando-se para encará-la. Seus olhos, normalmente calorosos, estavam frios, quase impassíveis.
— Diferente como?
Anya hesitou, procurando as palavras certas.
— Como se não ligasse mais para nada. Como se estivéssemos enfrentando tudo isso sozinhas e você não se importasse.
— Talvez porque não tenho escolha.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Anya, dando um passo à frente.
— Quero dizer que você tem algo pelo qual lutar, Anya. Algo maior do que você. Eu não.
As palavras atingiram Anya como um soco.
— Como pode dizer isso? Somos amigas. Você tem a mim, tem todos nós.
Heather riu, mas não havia alegria em seu tom.
— Amigas? Talvez. Mas a verdade é que, no final, tudo gira em torno de você. A profecia, Harya, o futuro do reino... Tudo recai sobre seus ombros, e nós somos apenas sombras ao seu lado.
Anya sentiu o rosto corar, mas não de vergonha. Era raiva.
— Não pedi para ser o centro de nada, Heather. Não pedi para ser filha de Harya ou para carregar essa responsabilidade.
Heather abriu a boca para responder, mas antes que pudesse dizer algo, o chão sob seus pés tremeu.
O som de terra desmoronando encheu o ar, e ambas olharam para baixo ao perceberem que o solo estava rachando. Antes que pudessem reagir, o chão cedeu, e elas despencaram em uma cavidade escondida sob a vegetação.
Anya gritou ao sentir o impacto, sua visão se tornando um borrão de luzes e sombras. Quando finalmente parou de rolar, olhou ao redor, tentando localizar Heather.
— Heather!
— Aqui! — a voz veio de algum lugar à sua direita, abafada, mas viva.
Anya se arrastou na direção do som e encontrou Heather sentada contra uma pedra, esfregando o ombro.
— Está machucada?
— Só um pouco — respondeu Heather, a voz mais suave desta vez.
Anya suspirou aliviada, mas o alívio foi breve. O ambiente ao redor era escuro, iluminado apenas por uma luz fraca que emanava das paredes, como se cristais embutidos nelas brilhassem de dentro para fora. Havia um som constante, como água pingando em algum lugar distante, mas era o cheiro que chamava a atenção: um odor metálico, semelhante a sangue.
— Onde estamos? — perguntou Heather, levantando-se com dificuldade.
— Não sei, mas... não parece seguro.
Explorando o ambiente com cuidado, Anya percebeu que estavam em uma espécie de túnel subterrâneo. As paredes eram lisas, como se tivessem sido esculpidas por mãos humanas ou algo ainda mais antigo.
— Anya... — a voz de Heather estava baixa, carregada de receio.
Anya virou-se para encontrar Heather apontando para o fundo do túnel. Algo se movia na escuridão.
Era uma criatura baixa, com um corpo esguio e membros desproporcionais. Seus olhos brilhavam em um tom âmbar, fixos nelas.
— Corra — sussurrou Heather, já puxando Anya pelo braço.
Ambas dispararam pelo túnel, os sons das patas da criatura ecoando logo atrás.
— Vire aqui! — gritou Anya, puxando Heather por um corredor lateral.
O túnel parecia interminável, mas finalmente, avistaram um feixe de luz à frente. Forçando seus corpos ao limite, elas correram em direção à saída, emergindo em uma nova clareira iluminada pelo sol.
A criatura não as seguiu, mas a sensação de estar sendo observada permaneceu.
Heather caiu de joelhos, ofegante, enquanto Anya tentava recuperar o fôlego.
— Acho que... podemos discutir depois, não é? — disse Heather, um sorriso cansado surgindo em seu rosto.
Anya não pôde deixar de rir, mesmo que seu coração ainda estivesse acelerado.
— Sim, definitivamente.
As duas ficaram ali por um momento, aproveitando o alívio temporário, enquanto o vento carregava os sussurros de um vale que ainda guardava muitos segredos.
Anya e Heather continuavam sentadas na clareira, ofegantes. O sol filtrava-se pelas árvores, criando um jogo de sombras que parecia brincar com suas percepções. Apesar de estarem seguras por ora, ambas sabiam que o perigo estava longe de acabar.
— Isso foi... perto demais — disse Heather, ajustando a bolsa no braço enquanto se levantava.
Anya concordou com um aceno, mas sua mente ainda estava no túnel. A criatura, os olhos âmbar... havia algo familiar naquilo, como se já tivesse ouvido histórias sobre seres que habitavam as profundezas do vale.
— Precisamos encontrar os outros — disse Heather, quebrando o silêncio.
— Concordo, mas para onde? — Anya olhou ao redor. A clareira parecia isolada, e o único som era o canto distante de pássaros.
Heather abriu a boca para responder, mas parou de repente. Seus olhos fixaram-se em algo à frente.
— Anya, olhe isso.
Seguindo o olhar de Heather, Anya viu uma estrutura antiga emergindo das árvores. Era um arco de pedra coberto por musgo, com runas entalhadas que brilhavam fracamente sob a luz do sol.
— O que é isso? — perguntou Anya, aproximando-se com cautela.
Heather tocou as runas delicadamente, franzindo o cenho.
— Parece... uma passagem. Talvez um portal?
— Um portal para onde? — Anya olhou por entre o arco, mas tudo o que viu foi a
floresta do outro lado.
Heather balançou a cabeça.
— Não sei. Mas essas runas... são antigas. Talvez até mais antigas do que Azuris.
O brilho das runas intensificou-se por um breve momento, e uma rajada de vento atravessou a clareira, balançando as árvores ao redor. Anya deu um passo para trás, instintivamente segurando o braço de Heather.
— Acho melhor não mexermos nisso agora — disse Anya.
Heather hesitou, mas acabou concordando.
— Certo. Vamos tentar encontrar os outros antes que...
O som de galhos quebrando interrompeu suas palavras. Ambas se viraram ao mesmo tempo, os olhos arregalados.
— Não me diga que... — começou Anya, mas antes que pudesse terminar, um rugido ecoou pela floresta.
Era a mesma criatura. Desta vez, porém, não estava sozinha.
Dois pares de olhos âmbar emergiram das sombras, seguidos por corpos magros e desajeitados. As criaturas pareciam híbridos de animais e humanos, com garras afiadas e
dentes que brilhavam à luz do sol.
— Corra! — gritou Heather, puxando Anya pela mão.
Elas dispararam pela clareira, mas as criaturas eram rápidas. Anya sentiu a respiração falhar quando ouviu as garras rasparem o chão logo atrás delas.
Heather parou de repente e virou-se, erguendo uma chama como um escudo.
— Heather, o que está fazendo? — gritou Anya, parando alguns passos à frente.
— Não podemos simplesmente correr para sempre!
Com um movimento rápido, Heather girou, e uma onda de luz vermelha irradiou-se dela, empurrando as criaturas para trás. Anya ficou boquiaberta, nunca imaginando que Heather fosse tão poderosa.
— Desde quando você consegue fazer isso? — perguntou Anya, enquanto Heather recuava para seu lado.
— Longa história. Agora, pode me ajudar?
Anya concentrou-se, sentindo a magia pulsar dentro de si. Estendeu as mãos, e uma onda de energia roxa emergiu de seus dedos, envolvendo as criaturas em uma névoa espessa.
— Eu consegui! — Comemorou Anya.
As criaturas hesitaram, confusas pela névoa, e Anya aproveitou a oportunidade para agarrar Heather.
— Vamos sair daqui enquanto podemos!
Depois de correrem por um longo tempo, as duas finalmente pararam para recuperar o fôlego. Haviam encontrado um pequeno riacho, onde a água cristalina corria suavemente.
— Isso foi... intenso — disse Heather, jogando-se no chão.
Anya sentou-se ao lado dela, olhando para o céu que começava a se tingir de laranja.
— Heather... o que foi aquilo? — perguntou Anya, virando-se para encará-la. — As chamas, as luzes... você nunca mencionou que tinha esse tipo de poder.
Heather suspirou, evitando o olhar de Anya.
— Não é algo que gosto de usar. É um presente... ou uma maldição, dependendo de como você vê.
— Quem te deu isso?
Heather hesitou, mordendo o lábio inferior.
— Minha mãe.
Anya arregalou os olhos.
— Elayla?
Heather balançou a cabeça em positividade.
O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Anya não sabia o que dizer. Ela sempre soubera que Heather tinha sido criada pela rainha Elayla,as nunca imaginou que aesma fosse de uma linhagem bruxa.
— Eu... sinto muito.
Heather finalmente olhou para ela, os olhos brilhando com uma emoção que Anya não conseguia decifrar.
— Não sinta. Ser bruxa é uma das melhores coisas que me aconteceu. Eu ainda sou Heather de Carmesins, filha de Elayla.
Anya assentiu, mas algo em sua expressão dizia que aquela conversa ainda não estava terminada.
O som de passos nas folhas chamou a atenção de ambas, e antes que pudessem reagir, uma voz conhecida soou:
— Finalmente encontrei vocês!
Era Victórya, com a espada na mão e Crystal logo atrás dela.
— Vocês estão bem? — perguntou Crystal, aproximando-se.
Anya e Heather se levantaram, aliviadas por verem suas amigas.
— Estamos. Mas há algo neste vale... — começou Anya.
— Sabemos. — Victórya interrompeu, apontando para uma trilha de sangue que seguia floresta adentro. — E acho que vai piorar antes de melhorar.
Indíce
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