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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO VIII

Filosofia e costumes dos huyhnhnms.

 

 

Algumas vezes solicitei do meu amo que me deixasse ver os rebanhos dos Yahus da vizinhança, a fim de examinar-lhes pessoalmente as maneiras e propensões. Consciente da aversão que lhes tinha, não receou que a vista e o contato com eles me corrompessem; quis, porém, que um corpulento alazão tostado, um dos seus criados fiéis e muito manso, me acompanhasse, receoso que me acontecesse algum acidente.

Os Yahus olharam-me como um semelhante seu, principalmente depois de me haverem visto as mangas arregaçadas, com o peito e braços nus. Quiseram, então, aproximar-se de mim, e começaram a arremedar-me, pondo-se em pé nas patas traseiras, levantando a cabeça e colocando uma das patas na ilharga. A vista da minha configuração fazia-os soltar gargalhadas. No entanto, testemunharam-me menos aversão e ódio, como fazem sempre os macacos selvagens à vista de um macaco aprisionado, que usa um chapéu, enverga uma roupa e anda de meias.

Com eles apenas me aconteceu uma aventura. Certo dia em que fazia muito calor e em que eu me banhava, uma jovem Yahu acercou-se de mim e desatou a apertar-me com quanta força tinha. Soltei grandes gritos e supus que as suas garras me dilacerariam; mas apesar da fúria que a animava e da raiva que lhe brilhava nos olhos, não me fez a menor arranhadura. O alazão acudiu, ameaçou-a e ela fugiu logo. Esta ridícula história, referida depois em casa, foi motivo de grande galhofa para meu amo e toda a família, enquanto para mim foi causa de vergonha e enleio. Não sei se devo observar que esta Yahu tinha cabelos pretos e a pele mais cinzenta do que todas as que tinha visto.

Como me demorei três anos naquela região, decerto o leitor espera de mim, a exemplo de todos os outros viajantes, que faça uma narrativa ampla dos habitantes desse país, quero dizer, dos huyhnhnms, e que exponha pormenorizadamente os seus usos, costumes, máximas e modos. É isso também o que vou fazer, mas em poucas palavras.

Como os huyhnhnms, que são os senhores e os animais dominantes nesta região, nasceram com grande propensão para a virtude e nem sequer fazem a idéia do mal com relação a uma criatura racional, a principal máxima é cultivar e aperfeiçoar o seu raciocínio e tomá-lo por guia em todos os seus atos. Entre eles, a razão não produz problemas   como   entre   nós   e   não   forma argumentos igualmente verossímeis pró e contra. Ignoram o que seja suscitar dúvidas, defender sentimentos absurdos e máximas perniciosas ou indignas a favor da probabilidade. Tudo o que eles dizem, convence, porque não afirmam coisa alguma obscura, duvidosa, desfigurada ou disfarçada pelas reflexões e pelo interesse. Recordo-me de que tive muito trabalho em fazer compreender a meu amo o que entendia pela palavra opinião, e como era possível que nós discutíssemos algumas vezes e que raramente fôssemos do mesmo parecer.

— Não é imutável a razão? — perguntava ele — A verdade não é uma só? Devemos garantir como certo o que é duvidoso? Devemos negar positivamente o que não vemos claramente que pode ser? Por que se debatem questões que a evidência não pode decidir, sobre as quais, fosse qual fosse o partido que tomassem, sempre encontrariam a dúvida e a incerteza? Para que servem todas essas conjecturas filosóficas, todos esses vãos raciocínios acerca de matérias incompreensíveis, todas essas indagações estéreis e essas eternas discussões? Quem tem boa vista não anda aos encontrões: com uma razão pura e penetrante não se deve contestar e, se assim o fazem, é porque é preciso que a sua razão esteja coberta de trevas ou que odeiem a verdade.

Era uma coisa admirável a sã filosofia deste cavalo; Sócrates nunca raciocinou com tanta sensatez. Se seguíssemos estas máximas, haveria certamente na Europa menos erros de que os que existem. Mas, então, em que se tornariam as nossas bibliotecas? Que seria feito da reputação dos nossos sábios e do negócio dos nossos livreiros? A república das letras seria apenas a da razão e nas universidades só haveria aulas de bom senso.

Os huyhnhnms amam-se reciprocamente, auxiliam-se, amparam-se e consolam-se mutuamente: não se invejam, não são ciosos da felicidade dos vizinhos; não atentam contra a liberdade e a vida dos seus semelhantes: julgar- se-iam infelizes, se algum dia o fizessem; dizem, a exemplo de um antigo: Nihil caballorum a me alienum puto (1). Não maldizem uns dos outros; a sátira não encontra neles nem princípio nem meio; os superiores não oprimem os inferiores com o peso do seu grau e da sua autoridade; o seu modo de proceder, justo, prudente e moderado nunca produz murmurações; a dependência é um laço e não um jugo, e o poder, sempre submetido às leis da equidade, é respeitado sem ser temido.

Os seus casamentos são melhor regulados do que os nossos. Os machos escolhem para esposas fêmeas  da  sua  cor.  Um  ruço-malhado  casa sempre com uma ruça-malhada, e assim consecutivamente. Por esta razão nunca se vê mudança, revolta ou míngua nas famílias. Os filhos são o vivo retrato dos pais; as armas e o título de nobreza consistem na conformação, estatura, cor e qualidades, que se perpetuam na descendência, de maneira que não se vê um cavalo magnífico e soberbo gerar um sendeiro, nem de uma sendeira nascer um bonito cavalo, como muitas vezes acontece na Europa.

Entre esses animais não há desavenças caseiras. A esposa é fiel ao marido, e o marido paga-lhe na mesma moeda.

Um e outro, embora envelheçam, não esfriam as suas relações, quando mais não seja as do coração; apesar de permitidos, o divórcio e a separação nunca foram postos em prática; os esposos são sempre amantes e as esposas sempre queridas; eles não são imperiosos, elas não são rebeldes e nunca pensam em recusar aquilo a que os maridos têm direito e que quase sempre se encontram em estado de exigir.

A castidade mútua é o fruto da razão e nunca do receio, atenção ou preconceito. São castos e fiéis, porque, para conservar tanto a suavidade como a boa ordem da vida, assim ê preciso e o prometeram. É o único motivo que lhes faz considerar a castidade como uma virtude. Além disso, têm na conta de um vício condenado pela natureza a negligência de uma propagação legítima da sua espécie e aborrecem tudo quanto pode causar obstáculo ou demora no cumprimento desse dever.

Educam os filhos com extraordinário cuidado. Enquanto a mãe vela pelo corpo e pela saúde, o pai atende ao espírito e à razão. Reprimem-lhes tanto quanto possível os ímpetos e os ardores fogosos da juventude e casam-nos cedo, em conformidade com os conselhos da razão e os desejos da natureza. Enquanto esses casamentos não se realizam, não consentem aos moços mais do que uma concubina, que mora na mesma casa e faz parte do número de criados, mas é sempre despedida nas vésperas do casamento.

As fêmeas recebem pouco mais ou menos a mesma educação dos machos, e lembro-me de que meu amo achava desarrazoado e ridículo o nosso costume sobre esse ponto. Dizia que metade da nossa espécie só tinha talento para se multiplicar.

O mérito dos machos consiste principalmente na força e na ligeireza, e o das fêmeas na meiguice e na docilidade. Se uma fêmea possui as qualidades do macho, procuram-lhe um marido que  tenha  as  qualidades  da  fêmea;  nesse  caso tudo é compensado e acontece, como às vezes entre nós, que o marido é a mulher e a mulher, o marido. Assim, os filhos gerados por estes casais não degeneram e perpetuam felizmente as qualidades dos autores dos seus dias.


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