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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO VI

Os papéis do capitão

Todo o caminho cavalgamos depressa, até pararmos à porta do doutor Livesey. A frente da casa estava às escuras. O senhor Dance disse-me para me apear e tocar à porta, e Dogger deu me um estribo para descer. A criada veio abrir quase logo. 

– O doutor Livesey está? – perguntei. 

– Não – disse ela. O médico tinha ido a casa de tarde, mas saíra para jantar e passar o serão com o morgado no solar. 

– Então vamos lá, rapazes – declarou o senhor Dance. 

Dessa vez não montei porque a distância era pequena, correndo em vez disso, a par da correia do estribo de Dogger, até aos portões da propriedade, e pela longa avenida de árvores despidas, ao luar, até onde se erguia o solar debruçado, nas suas linhas brancas, sobre a extensão dos velhos jardins. Ali desmontou o senhor Dance e, levando-me com ele, foi rapidamente recebido. 

Um criado conduziu-nos por um corredor atapetado até uma grande biblioteca, toda forrada de estantes encimadas por bustos e onde, de cachimbo na mão, estavam o morgado e o doutor Livesey sentados de cada lado do fogão aceso. 

Nunca tinha visto o morgado tão de perto. Era alto, com mais de um metro e oitenta, bastante largo, de rosto franco e expressivo, tornado áspero e avermelhado, marcado pelas longas viagens. Tinha as sobrancelhas muito negras, que ao moverem-se com vivacidade lhe davam um ar de ter algum génio, não mau, mas antes rápido e animado. 

– Entre, senhor Dance – disse, muito fidalgo e condescendente. 

– Boa tarde, Dance – acenou o médico. – E também para ti, amigo Jim. Que bons ventos vos trazem cá? 

O superintendente, em posição de sentido, narrou a sua história como uma lição. E valia a pena ver os dois cavalheiros inclinados para a frente a olhar um para o outro, esquecendo-se de fumar tal era a sua surpresa e interesse. Ao ouvirem como a minha mãe tinha voltado à hospedaria, o doutor Livesey deu uma palmada na perna, e o morgado exclamou “Bravo!”, e partiu o cachimbo contra a grelha do fogão. Muito antes de terminar o relato, o senhor Trelawney (lembrar-se-ão que era esse o nome do morgado) tinha-se levantado e passeava-se pela sala, enquanto o médico, como se para melhor ouvir, tirara a cabeleira empoada e ficara sentado, parecendo muito estranho com o seu cabelo natural, negro e curto. 

Por fim, o senhor Dance terminou a narrativa. 

– Senhor Dance – afirmou o morgado –, o senhor é um homem a sério. E quanto a ter atropelado aquele meliante danado, considero que foi uma boa ação, como a de calcar uma barata. E então aqui este moço Hawkins é um ás, pelo que vejo. Hawkins, faz favor tocas essa campainha? O senhor Dance tem de beber uma cerveja. 

– E então, Jim – disse o médico –, sempre és tu que tens o que eles procuravam? 

– Está aqui, senhor – respondi, dando-lhe o embrulho de oleado. 

O médico virou-o de todos os lados, como se ansioso por o abrir mas, em vez disso, meteu-o calmamente no bolso do casaco. 

– Morgado – adiantou –, quando o Dance beber a cerveja vai ter, claro, de voltar ao serviço de sua majestade, mas eu queria que o Jim Hawkins ficasse cá e depois fosse dormir a minha casa, e se me dá licença podíamos mandar vir o empadão frio e deixá-lo cear aqui. 

– À vontade, Livesey – respondeu o morgado –, o Hawkins tem direito a melhor do que empadão frio. 

E assim me trouxeram uma grande empada de pombo que foi posta numa mesinha, onde comi uma ceia valente, pois tinha mais fome que um falcão, enquanto o senhor Dance, tendo recebido os últimos elogios, por fim se retirou. 

– E agora, morgado? – suspirou o médico. 

– E agora, Livesey? – disse o morgado, em uníssono. 

– Um de cada vez, um de cada vez – acrescentou o doutor Livesey a rir. – Creio que ouviu falar do tal Flint? 

– Se ouvi! – exclamou o morgado. – Diz você se ouvi falar dele! Foi o pirata mais sanguinário de todos os tempos. À vista de Flint, o Barba Negra era uma criança. Os espanhóis tinham tanto medo dele que, digo-lhe, às vezes cheguei a sentir orgulho de ser inglês. Vi com os meus olhos as velas dele, muito ao longe, ao largo da Trinidad, e o comandante do navio onde eu ia, o borrachola cobarde, fugiu logo, fugiu, senhor, para o porto de Espanha. 

– Bom, também eu ouvi falar dele aqui na Inglaterra – disse o médico. – Mas a questão é... tinha ele fortuna? 

– Fortuna! – exclamou o morgado. – Não soube da história? Que procuravam esses bandidos a não ser dinheiro? Que mais lhes importava senão dinheiro? Em que arriscavam o coiro se não fosse por dinheiro? 

– Isso havemos de saber em breve – respondeu o médico. – Mas o meu amigo está tão acalorado e excitado que nem me dá tempo de falar. O que eu quero saber é isto: suponhamos que tenho aqui no bolso qualquer pista do sítio onde o Flint escondeu o seu tesouro, será tal tesouro muito grande? 

– Grande, senhor! – exclamou de novo o anfitrião. – Será grande a este ponto: se você tem a pista que diz, eu aparelho um navio no porto de Bristol, levo-o a si e aqui ao Hawkins comigo, e hei-de ter esse tesouro nem que leve um ano a procurá-lo. 

– Muito bem – concluiu o médico. – Ora então, se o Jim estiver de acordo, vamos abrir o embrulho – e pousou-o na mesa à sua frente. 

O pacote estava cosido, e o médico teve de ir buscar a sua caixa de instrumentos e cortar os pontos com a tesoura cirúrgica. Continha duas coisas – um livro e um papel lacrado. 

– Primeiro vamos ao livro – observou o médico. 

Enquanto ele o abria, o morgado e eu espreitávamos um de cada lado, pois o doutor Livesey tivera a atenção de me chamar da mesinha onde comera para participar do entusiasmo da busca. 

Na primeira página só havia umas garatujas, como se fossem feitas por uma pessoa só para se divertir ou se treinar com a pena na mão. Uma era a mesma que a marca tatuada, Ao gosto de Billy Bones, a seguir havia “senhor W Bones, imediato”, “Acabou-se o rum, Apanhou-o ao largo de Palm Key”, e mais alguns rabiscos, a maior parte palavras isoladas e ininteligíveis. Não pude deixar de imaginar quem seria que tinha apanhado, e o que era o que tinha apanhado. Talvez até uma faca nas costas. 

– Não tem coisa que se entenda – disse o doutor Livesey, passando adiante. As dez ou doze páginas a seguir eram preenchidas com uma curiosa série de notas. No princípio da linha havia uma data e no fim uma quantia de dinheiro, como nos livros de contas vulgares; mas em vez de entradas escritas, entre as duas só se via uma série de cruzes em número variável. Por exemplo, no dia 12 de Junho de 1745, a quantia de setenta libras era claramente lançada a débito de alguém, e apenas havia seis cruzes para explicar o motivo. Em alguns casos era certo que se tinha acrescentado o nome dum local, como Ao largo de Caracas, ou só uma indicação de latitude e longitude, como “62 g. 17 min. 20 seg., 19. g. 2 min. 40 seg.”. 

O registro desdobrava-se através de perto de vinte anos, com o valor das diversas verbas a crescer com o decorrer do tempo, e no fim tinha sido calculado um total geral, após cinco ou seis somas erradas, com as palavras “Bones sua parte”. 

– Não consigo deslindar isto – disse o doutor Livesey. – A coisa é clara como o dia – atalhou o morgado. – Isto é o livro de contas daquele cachorro cruel. Essas cruzes são os navios ou cidades que eles meteram ao fundo ou saquearam. Os valores são a parte do malandro, e sempre que podia haver alguma dúvida, veja que ele acrescentava qualquer coisa mais clara. Ao largo de Caracas, deve ser qualquer barco infeliz abordado naquelas paragens. Deus tenha em paz as almas dessa tripulação, feitas em coral há muito. 

– Certo! – disse o médico. – É o que faz ser viajante. Certo! E as verbas vão aumentando, como vê, ao passo que ele subia de posto. 

Pouco mais havia no livro exceto algumas coordenadas de lugares anotadas nas folhas em branco mais para o fim, e uma tabela para reduzir dinheiro francês, inglês e espanhol a um câmbio comum. 

– O manhoso! – exclamou o médico. – Não era pessoa que se deixasse vigarizar. 

– E agora – disse o morgado –, vamos ao outro. 

O papel fora lacrado em diversos sítios com um dedal a servir de sinete, o próprio dedal, quem sabe, que eu encontrara no bolso do capitão. O médico abriu os lacres com todo o cuidado e revelou o mapa duma ilha, com a latitude e longitude, as indicações dos fundos, nomes de montes, baías e enseadas, e todos os pormenores necessários para levar um navio a bom porto naquelas praias. Tinha cerca de quinze quilômetros de comprido por oito de largura e o feitio podia, talvez, lembrar um dragão gordo, em pé, e com dois bons portos abrigados pela terra e uma montanha na parte central assinalada com o nome de O Óculo. Havia diversos apontamentos de data posterior mas, principalmente, três cruzes traçadas a vermelho – duas na parte norte da ilha, uma no sudoeste e, ao lado desta última, escritas com a mesma tinta vermelha, em letra miúda e firme, muito diferente das letras tremidas do capitão, estas palavras: “O grosso do tesouro aqui.” 

No verso do mapa, a mesma pessoa tinha escrito as seguintes indicações: 

 

“Árvore alta, quebrada do óculo, enfiada um ponto a N. de N. N. E. Ilha do Esqueleto E. S. E. e uma quarta por E. Dez pés. Prata em barras no esconderijo norte; encontra-se na direção do cabeço leste, dez braças a sul da pedra negra com a cara. Fácil encontrar as armas na duna, ponta N. do cabo da angra norte, para E. e uma quarta N. J. F.” 

 

Era tudo, mas, embora tão breve e, para mim, incompreensível, encheu o morgado e o doutor Livesey de contentamento. 

– Livesey – declarou o morgado –, você despede-se já da sua prática que não vale nada. Amanhã parto para Bristol. Dentro de três semanas – três semanas!... duas semanas... dez dias – teremos o melhor navio, senhor, e a mais capaz tripulação de toda a Inglaterra. O Hawkins vem como grumete. E vais ser um estupendo grumete, Hawkins. Livesey é médico de bordo e eu sou almirante. Contamos com o Redruth, o Joyce e o Hunter. Vamos ter vento a favor e uma viagem rápida, sem nenhum problema para dar com o local, e dinheiro para comer – para nos rebolarmos nele –, para gozar durante toda a vida. 

– Trelawney – observou o médico –, vou consigo, com a melhor das vontades, e o Jim também, e darei à empresa todo o esforço. Só há um homem que me mete medo. 

– Mas quem é? – exclamou o morgado. – Diga-me quem é o malandrim! 

– É o senhor – replicou o médico –, que não consegue ter tento na língua. Não somos só nós que sabemos deste papel. Aqueles que atacaram a estalagem hoje – por certo cruéis e desesperados – e o resto que ficou no lugre, e ainda mais, atrevo-me a dizer, que não andam por longe, estão todos resolvidos a fazer tudo por tudo para deitar a mão a esse dinheiro. Nenhum de nós pode ficar sozinho até ir para o mar. Até lá o Jim e eu ficamos juntos, leve o Joyce e o Hunter consigo para Bristol e, do primeiro ao último, que nenhum de nós sopre uma só palavra daquilo que descobrimos. 

– Livesey – tornou o morgado –, você tem sempre razão. Vou ser mudo como um túmulo.


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